quarta-feira, 21 de março de 2012

O suicídio segundo...

Publicações na Imprensa
2006-03-11 - O Estado de S. Paulo
Sérgio Augusto
O suicídio segundo Marx e a polícia
Aquilo que Albert Camus qualificou de “o único problema filosófico realmente sério” acaba de ganhar, entre nós, um surpreendente exegeta: ninguém menos que Karl Marx (1818-1883). Quando jovem, relativamente fresco em filosofia, interessou-se pela questão do suicídio e tentou destrinchá-la a partir das estatísticas de um ex-arquivista da polícia parisiense. O ensaio resultante, Peuchet: vom Selbstmord, foi publicado em 1846, numa revista proletária alemã, e por quase um século andou esquecido. Até na Alemanha.

Sua tradução brasileira (Sobre o Suicídio, 84 págs.), feita diretamente do alemão e uma das atrações da editora Boitempo na Bienal do Livro de São Paulo, é melhor que a francesa (de 1983, pela Gallimard) e tem mais notas que a inglesa (de 1975), igualando-se às que franceses e ingleses publicaram em 1992 e 1999, respectivamente.

É um “Marx insólito”, resume, na introdução, Michael Löwy. É mesmo. Na escolha do tema, aparentemente fora da alçada do materialismo dialético, e na maneira como o xamã do comunismo o aborda, sem desprezar as vítimas das classes privilegiadas. Ao perscrutar as angústias da vida privada, mediada pelas relações de classe na sociedade burguesa, Marx antecipa temas que voltaram a ser destaque nesta semana, como a opressão da mulher e o direito ao aborto.

Sem falar, é claro, na questão principal, o suicídio (“Selbstmord”, em alemão), assunto sempre atual e particularmente melindroso, de uns tempos para cá, entre os militares brasileiros — e que Marx teria sentido na própria carne, caso tivesse vivido mais 15 anos. Em 1898, sua filha caçula, Eleanor, cometeu o que há 15 séculos a Igreja, inspirada por Santo Agostinho, enquadrou na categoria de pecado mortal.

O “Peuchet” do título original é o sobrenome de Jacques Peuchet, o francês de cujas estatísticas sobre suicídios (2808, só em Paris, entre 1817 e 1824) Marx se valeu para refletir sobre o que Freud entendia como uma agressão introjetada e Nietzsche, como um grande consolo para noites difíceis. Peuchet, que morreu em 1830 aos 72 anos, não era filósofo, nem economista, e muito menos socialista. Estudara medicina, dirigira um jornal monarquista e exercera vários cargos públicos, entre os quais o de arquivista policial. Já não estava mais neste mundo havia oito anos quando publicaram as suas Mémoires Tirés des Archives de la Police de Paris, coleção informal de incidentes e episódios ligados a suicídios, seguidos de alguns comentários dignos de um perspicaz crítico social, que Marx aproveitou e misturou aos seus.

Na Paris daquele tempo, a maioria das pessoas se suicidava por motivos que ainda hoje pesam: doenças, depressão, fraqueza de espírito, paixão, miséria, desemprego, brigas e desgostos domésticos. E, preferencialmente, por afogamento, quase sempre no rio Sena.

Um dos casos recolhidos por Peuchet teria inspirado O Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas, por sinal, um dos livros de cabeceira de Marx. Esse detalhe não consta do ensaio, cuja origem (as memórias de um policial, ainda por cima monarquista) só parecerá espúria a quem não conhece Marx suficientemente bem; a quem desconhece que ele não achava imprescindível ser socialista para criticar a ordem estabelecida; a quem ignora que ele aprendeu muito mais sobre a sociedade francesa na ficção de Balzac, de Eugène Sue, e muito mais sobre a sociedade inglesa lendo Charles Dickens do que gramando tomos e mais tomos de análises políticas, econômicas e sociológicas.

O que mais o entusiasmou nos comentários de Peuchet foi sua concepção do suicídio como sintoma de um meio social doente, necessitado de uma transformação radical. A sociedade burguesa, escreve Marx, citando Peuchet, que, por sua vez, cita Rousseau, “é um deserto, habitado por bestas selvagens”. Cada indivíduo, isolado dos demais, vive numa espécie de “solidão em massa”. As pessoas agem entre si como estranhas, hostilizando-se mutuamente, metidas em “luta e competição impiedosas”, ora como vítimas, ora como carrascos, caminho aberto para o desespero, o desatino — e o suicídio.

Desgraça democrática, a ela estão sujeitas todas as classes sociais. As causas variam (os mais abastados se deixam atormentar mais por doenças incuráveis, traições, rivalidades sufocantes, desilusões amorosas, sofrimentos familiares, crise nos negócios, tédio e monotonia), mas a censura ao ato é tão uniforme quanto a insensibilidade dos moralistas que o condenam como algo antinatural, um sinal de fraqueza, um gesto covarde, um crime contra as leis, a sociedade e a honra. “Não é com insultos aos mortos que se enfrenta uma questão tão controversa”, adverte Marx.

Antinatural o suicídio não é. Se o fosse, argumenta Marx, não seríamos testemunhas diárias de sua naturalidade. Poderia ter ressaltado o aspecto prometéico do suicídio — que o transfigura num ato de coragem e num desafio à natureza e à autoridade divina —, mas preferiu criticar a Igreja por outras vias. Para ele, o clero que recusa aos suicidas uma sepultura e um lugar nas verdes pastagens do Senhor não merece ser chamado de religioso. Insensível e covarde, sim. Com que direito podemos exigir do indivíduo “que preserve em si mesmo uma existência que é espezinhada por nossos hábitos mais corriqueiros, nossos preconceitos, nossas leis e nossos costumes em geral?”, pergunta o jovem Karl, do alto dos seus 28 anos de vida.

Ele não chega a qualificar o suicídio de “reivindicação revolucionária”, como fariam os franceses Claude Guillon e Yves Le Bonniec, 136 anos mais tarde, num livro de auto-ajuda sobre a autodestruição (Suicídio, Modo de Usar), curiosamente inspirado na morte de Eleanor Marx, mas passa bem perto disso. Mais perto, sem dúvida, ele passa do que, no século seguinte, faria vibrar as cordas do movimento feminista. Seu texto é uma das mais poderosas críticas à opressão contra as mulheres já escritas por um marmanjo. Em três dos quatro casos de suicídio que destacou das memórias de Peuchet, as vítimas são mulheres: duas burguesas e uma de origem popular, filha de um alfaiate. Todas imoladas pelo patriarcalismo ou pela tirania familiar, uma forma de poder arbitrário que, infelizmente, não caiu com a Bastilha.

No primeiro caso, uma jovem é levada ao suicídio por seus pais, inflexíveis apóstolos do autoritarismo pater-mater familias. No segundo, o algoz é um marido machão, ciumento e opressor, que trata a mulher “como um avarento trata o cofre de ouro”, trancando-a a sete chaves, como se ela fosse “parte do seu inventário”. No primeiro descuido, ela escapa do presídio doméstico e se mata. No terceiro, uma jovem engravida e é levada ao suicídio “pela hipocrisia social, pela ética reacionária e pelas leis burguesas que proíbem a interrupção voluntária da gravidez.”

Tais histórias poderiam ter ocorrido em outros países da Europa, onde talvez já fosse maior a incidência de suicídios. Na Hungria, por exemplo, campeã mundial da especialidade desde a década de 1980. A França, porém, tem um lastro respeitável de artistas e intelectuais com vocação para Werther, que remonta ao século 18.

O escritor e humorista Nicolas Chamfort abreviou os sofrimentos infligidos pela sífilis suicidando-se em 1794. Trinta e cinco anos depois, o versátil e também siflítico Alphonse Rabbe faria o mesmo, não sem antes teorizar a respeito com o seu Album d’un Pessimist, vade-mécum ainda utilizado, com mórbida fascinação, por todos os poetas e intelectuais românticos contemporâneos de Gérard de Nerval, que em 1855 enforcou-se num poste de rua. Nerval foi um precursor do simbolismo e do surrealismo. Em todos os sentidos. O que, de certo modo, explica o fim que tiveram os surrealistas Jacques Vaché, René Crevel e Jacques Rigault.

Nas últimas três décadas, a onda não refluiu. O teórico marxista Nicos Poulantzas (nascido na Grécia mas francês por opção) atirou-se do 22º andar de uma torre parisiense, em 1979. Dizendo-se “velho, vexado e humilhado”, Roger Stéphane, discípulo de Gide, deu um basta às suas aflições em 1994. Nos anos seguintes, Gilles Deleuze, o situacionista Guy Debord e Sarah Kofman (austera filósofa ligada a Jacques Derrida) entraram para o limbo dos malditos onde penam as almas de Sócrates, Petrônio, Cleópatra, Van Gogh, Mayakovsky, Virginia Woolf, Hemingway, Sylvia Plath, Getúlio Vargas, Yukio Mishima e tantas outras exceções que justificam a regra de que francês adora se matar. Também foi por isso que Emma Bovary tornou-se a mais célebre heroína ficcional da França.

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