“A dificuldade de praticar o suicídio está nisto: é um ato de ambição que só pode ser realizado depois de superada toda a espécie de ambição.” - Cesare Pavese
Dias atrás eu estava pesquisando algumas coisas sobre psicologia forense e me deparei com um caso de suicídio de um português, um caso nada incomum em uma matéria veiculada pelo jornal Expresso de Portugal, onde discorre o assunto sobre um empresário português que fora condenado supostamente pelo preconceito homoafetivo, como modo indicioso de extorsão pelos parentes, e como ele decidiu pôr fim de modo indolor à sua vida. Seu nome era Júlio Olivares, que logo ganharia o nome fictício de David em seu romance autobiográfico intitulado “sem culpa”.
Júlio foi condenado em outubro de 2008 por pedofilia contra o seu sobrinho. A defesa recorreu da sentença, ao contestar a acusação como sendo vitima de uma armação para que os parentes do garoto ganhassem uma indenização. Numa confissão do sobrinho de Júlio feita ao seu irmão, pai do garoto, Miguel de 37 anos, em um bate papo na internet, seu filho disse que havia mentido sobre a acusação com as seguintes palavras: “Eu menti porque os meus tios precisavam de dinheiro e porque vocês me abandonaram”.
Miguel havia perdido a custódia do filho há algum tempo por levar uma vida errante e ausente, e em contrapartida o garoto passou a morar com os tios. Como uma forma talvez de se regenerar, Miguel quis assumir o papel de testemunha de defesa do irmão, apresentando as provas junto à advogada. Reportou ainda ao juiz outra parte da conversa que teve com o filho, onde o garoto relatou que “a tia não sabia que aquela ação levaria à prisão de Júlio”, e o comportamento dos seus tios segundo o garoto, fora para a defesa do réu de uma forma indiciosa ao que referiram sobre os “25 mil euros que custaram conseguir com a condenação indenizatória”.
Contudo, mesmo assim o juiz acreditava na versão do acusador, onde disse que o garoto depôs de forma sentida, sincera, clara e absolutamente coerente. Para o juiz as declarações do menino foram decisivas, uma vez que se compreende na maioria dos casos de crimes sexuais, em que as testemunhas oculares se resumem ao abusador e ao abusado.
As ameaças de suicídio eram cada vez mais evidentes conforme o processo se mantinha e por algum motivo particularmente desconhecido, Julio não queria morrer em Portugal. A conversa que se aligeirava do acordo processual só lhe dava uma esperança cada vez menos otimista e distante.
Júlio já havia tentado o suicídio aos 14 anos, quando na época o seu pai era alcoólatra e o espancava. Aos 18 saiu de casa quando arranjou um emprego numa empresa de contabilidade onde brevemente criaria sua própria empresa e voltaria a estudar onde acabou se formando em engenharia de computação. Lançou vários sites de compras e fóruns ligados a comunidade gay, tornando-se um webmaster reconhecido.
Escrevera em seu blog que a única coisa que o preocupava naqueles dias era deixar palavras por dizer. Ao que o caso discorrera entre controvérsias, alegações e o desgaste psicológico, Júlio, durante um ano e meio preparava tudo para ir-se embora de Portugal. Doou as mobílias da sua casa em Algés a uma instituição de caridade, entregou o apartamento alugado onde morava, delegou os negócios para o melhor amigo, deu o carro a outro, conseguiu na farmácia três caixas de Valium e comprou uma passagem só de ida para os EUA.
Estando no EUA, no dia 6 de outubro de 2009 recebeu a noticia de que o recurso dera como improcedente, e no mesmo dia iniciou o seu livro autobiográfico. Escreveria a partir de então a sua obra póstuma. A obra que se queria póstuma, pois, foi publicada antes da sua morte, e logo depois de certo tempo desaparecido, escrevia em seu blog que ainda tinha esperança com as seguintes palavras: “ vivo os meus últimos dias num vazio, desolado com a justiça que não chegou. Embora não tenha sido este o propósito, pensei que o livro apoquentasse consciências.” Depois da mensagem no blog, Miguel conseguiu de certa forma reatar contato com o irmão tentando convencer-lhe a regressar para o seu país e a desistir das idéias suicidas
Júlio, a esta altura se encontrava em profunda depressão, já havia tentado quatro vezes o suicídio com o mesmo medicamento que comprara mais de uma vez - Valium. Das vezes que buscou concretizar a sua ideação suicida, descreve: “Dei por mim, dias a fio, a correr farmácias para ver os componentes dos medicamentos de venda livre. Na Net, estudava a quantidade para uma overdose mortal. Fui várias vezes à ponte e nunca consegui saltar. Depois vi uma notícia sobre uns fulanos que tinham engolido cocaína para a esconder, e que morreram. Arranjei 7 gramas , comprei comprimidos em cápsulas, abri as cápsulas, tirei o produto, enchi com a cocaína e tomei-as. Em vez de morrer, acordei quase sem respirar”.
Em 20 de julho de 2010, o engenheiro informático escrevia: “O meu desgaste mental é total e decidi entregar-me. Estou à espera de um carro para San José onde vou apanhar um vôo para New York e de lá vôo para Lisboa ou Madrid. Reservo-me o direito de mudar de idéia, já que o meu real desejo é morrer em vez de ir preso”.
Júlio nunca comprou o bilhete de volta. E, no fim, extintos os recursos, o acusado opta pelo suicídio. Morreu no dia 1 de agosto, no quarto 146 do hotel El Capitan, numa zona degradada de São Francisco. O gerente encontrou-o três dias depois, quando o odor já indiciava o pior. Encontram-no com um saco na cabeça. A autópsia constatou que havia no seu organismo uma quantidade grande do remédio Valium, que foi ingerido ao mesmo tempo em que usara o recurso do suicídio por asfixia. Um saco preso à cabeça com um garrote envolto ao seu pescoço para que morresse se não pela overdose do remédio, pela asfixia. Prática essa mais comum do que se imagina, rápida, limpa e indolor.
No bilhete de suicídio, escreveu: “A minha morte foi uma escolha minha, motivada pelas razões explanadas no meu livro. Prefiro morrer livre no vosso país a viver no meu, Portugal. O meu último desejo é ser enterrado nos EUA. Por favor, make it happen”.
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Albert Camus
- CAMUS, Albert. O mito de sísifo. São Paulo: Record, 2004
- "Começar a pensar é começar a ser atormentado." (p. 18)
- "Morrer por vontade própria supõe que se reconheceu, mesmo instintivamente, o caráter ridículo desse costume, a ausência de qualquer motivo profundo para viver, o caráter insensato da agitação cotidiana e a inutilidade do sofrimento." (p. 19)
- "Cenários desabarem é coisa que acontece. Acordar, bonde, quadro horas no escritório ou na fábrica, almoço, bonde, quatro horas de trabalho, jantar, sono e segunda terça quarta quinta sexta e sábado no mesmo ritmo, um percurso que transcorre sem problemas a maior parte do tempo. Um belo dia, surge o “por quê” e tudo começa a entrar numa lassidão tingida de assombro. “Começa”, isto é o importante. A lassidão está ao final dos atos de uma vida maquinal, mas inaugura ao mesmo tempo um movimento da consciência. Ela o desperta e provoca sua continuação. A continuação é um retorno inconsciente aos grilhões, ou é o despertar definitivo. Depois do despertar vem, com o tempo, a conseqüência: suicídio ou restabelecimento." (p. 27)
- "Uma coisa apenas: essa densidade e essa estranheza do mundo, isto é o absurdo." (p. 29)
- "No plano da inteligência, posso então dizer que o absurdo não está no homem (se semelhante metáfora pudesse ter algum sentido) nem no mundo, mas na sua presença comum." (p. 45)
- "A negação é o Deus dos existencialistas." (p. 55)
- "O absurdo me esclarece o seguinte ponto: não há amanhã." (p. 70)
- "O homem cotidiano não gosta de demorar. Pelo contrário, tudo o apressa. Ao mesmo tempo, porém, nada lhe interessa além de si mesmo, principalmente aquilo que poderia ser." (p. 92)
- "A expressão começa onde o pensamento acaba." (p. 114)
- "Saber se o homem é livre exige saber se ele pode ter um amo. A absurdidade particular deste problema é que a própria noção que possibilita o problema da liberdade lhe retira, ao mesmo tempo, todo o seu sentido. Porque diante de Deus, mais que um problema da liberdade, há um problema do mal. A alternativa conhecida: ou não somos livres e o responsável pelo mal é Deus todo-poderoso, ou somos livres e responsáveis, mas Deus não é todo-poderoso. Todas as sutilezas das escolas nada acrescentaram nem tiraram de decisivo a este paradoxo."
- "Deixo Sísifo no sopé da montanha! Encontramos sempre o nosso fardo. Mas Sísifo ensina a fidelidade superior que nega os deuses e levanta os rochedos. Ele também julga que tudo está bem. Esse universo enfim sem dono não lhe parece estéril nem fútil. Cada grão dessa pedra, cada estilhaço mineral dessa montanha cheia de noite, forma por si só um mundo. A própria luta para atingir os píncaros basta para encher um coração de homem. É preciso imaginar Sísifo feliz."
- "Não há destino que não se transcenda pelo desprezo."
- "Uma atitude saudável inclui também defeitos."
- "Um homem sem memória é um homem sem passado. Mas um homem que não sabe fantasiar é um homem sem futuro."
- "Sim, o homem é o seu próprio fim. E é o seu único fim."
- "Mas só há um mundo. A felicidade e o absurdo são dois filhos da mesma terra. São inseparáveis. O erro seria dizer que a felicidade nasce forçosamente da descoberta absurda. Acontece também que o sentimento do absurdo nasça da felicidade. “Acho que tudo está bem”, diz Édipo e essa frase é sagrada. Ressoa no universo altivo e limitado do homem. Ensina que nem tudo está perdido, que nem tudo foi esgotado. Expulsa deste mundo um deus que nele entrara com a insatisfação e o gosto das dores Inúteis. Faz do destino uma questão do homem, que deve ser tratado entre homens. Toda a alegria silenciosa de Sísifo aqui reside. O seu destino pertence-lhe."
- "Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: o suicídio. Julgar se a vida merece ou não ser vivida é responder uma questão fundamental da filosofia. O resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias, vem depois. Trata-se de jogos; é preciso primeiro responder. E se é verdade, como quer Nietzsche, que um filósofo, para ser estimado, deve pregar com o seu exemplo, percebe-se a importância dessa reposta, porque ela vai anteceder o gesto definitivo. São evidências sensíveis ao coração, mas é preciso ir mais fundo até torná-las claras para o espírito. Se eu me pergunto por que julgo que tal questão é mais premente que tal outra, respondo que é pelas ações a que ela se compromete. Nunca vi ninguém morrer por causa do argumento ontológico. Galileu, que sustentava uma verdade científica importante, abjurou dela com a maior tranqüilidade assim que viu sua vida em perigo. Em certo sentido, fez bem. Essa verdade não valia o risco da fogueira. Qual deles, a Terra ou o Sol gira em redor do outro, é-nos profundamente indiferente."
E pra fechar, uma frase irônica, do mesmo autor: "Nenhum homem é hipócrita nos seus prazeres."
Em uma sociedade com suas fábricas de ilusões que não se esgotam.
- CAMUS, Albert. O mito de sísifo. São Paulo: Record, 2004
- "Começar a pensar é começar a ser atormentado." (p. 18)
Em uma sociedade com suas fábricas de ilusões que não se esgotam.
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