terça-feira, 17 de janeiro de 2012

O Suicídio nas civilizações: uma retomada histórica

O SUICÍDIO NAS CULTURAS
Resumo: Este artigo traz uma breve retomada histórica sobre a concepção do suicídio, que permeou diversos momentos históricos. Iniciando nos primórdios da civilização humana até a atualidade, observa-se diferentes épocas e culturas, que ora permitem ora repreendem o ato suicida. Além do aspecto cultural, percebe-se a influência das religiões na estruturação da forma de se pensar e reagir ao suicídio. Em cada momento histórico havia um contexto social, econômico, político e religioso que explicavam ou justificavam o ato suicida, da mesma forma como deve acontecer atualmente e possivelmente continuará no decorrer dos tempos.

INTRODUÇÃO
O suicídio costuma ser interpretado como um ato isolado de um indivíduo descontente. As análises que procuram detectar a motivação do suicida estão habitualmente voltadas apenas para a vida do suicida, seus hábitos, suas emoções e as dificuldades pelas quais estava passando. Aparentemente, o suicídio é um ato individual, solitário, que destoa da vida em sociedade. Contudo, alguns autores ressaltam a importância e a influência do meio sociocultural nas tentativas e nos modos como aconteciam e acontecem os suicídios; isto pode ser observado a partir de uma retomada histórica do suicídio em diferentes civilizações. Autores preocupados em remontar um histórico do suicídio encontraram material que permite rever o conceito de suicídio enquanto algo com enorme influência do contexto social.
Desde os primórdios da vida humana o suicídio existe e em cada época e em cada civilização teve uma função e um significado. A partir de uma breve análise histórica de como o homem e a sociedade lidavam e encaravam o suicídio, pode-se observar que em algumas sociedades primitivas a religião impunha o suicídio como parte da vida; e em outras sociedades eram cometidos suicídios em massa para fugir da violência de outras civilizações. Tendo em vista aspectos da sociedade grega, da sociedade romana e ressaltando o suicídio do cristianismo primordial até o século XVIII, pode-se constatar a forte influência da sociedade, não apenas na motivação, mas também na forma de execução do suicídio.
Sendo assim, este artigo visa uma retomada breve e parcial de como o suicídio foi encarado por diferentes sociedades em diferentes épocas, levando-se em conta as questões e acontecimentos históricos e culturais destas sociedades e que, provavelmente, justificam o modo de se lidar e pensar o suicídio que se observa atualmente.



O SUICÍDIO EM SOCIEDADES PRIMITIVAS

As culturas mais antigas tinham formas de encarar o suicídio bem diversas e algumas possuíam rituais para aqueles membros que se suicidavam e para lidar com o corpo dos que se matavam. Algumas culturas politeístas apresentam registros da interpretação comunitária do suicídio de seus membros. Pode-se citar como exemplo os vikings, que acreditavam no Valhalla – “Palácio daqueles que morreram com violência” – como sendo o paraíso. Apenas os mortos violentamente poderiam entrar no Valhalla e participar do banquete presidido pelo deus supremo Odin. Era uma honra muito grande morrer em batalhas ou, em segundo lugar, cometer suicídio, o que dava a certeza de se alcançar o paraíso.
Também os esquimós acreditavam na morte violenta como pré-requisito para usufruir do paraíso e o suicídio se incluía neste tipo de morte. Ruesch (17) descreve como uma morte digna para um esquimó, aquela em que ele, percebendo o seu fim, vai para longe do seu grupo para morrer, a fim de possibilitar mais alimentos para os jovens e permitir a seu povo não precisar cuidar de um ancião, sendo este ato normal e desejável para a cultura esquimó.
Entre os astecas, oferecer-se como oferenda aos deuses em rituais de morte era muito bem visto pela comunidade, assim como a morte em batalhas. Em outras sociedades primitivas como em Uganda, uma mãe deveria se matar, caso um de seus filhos tivesse morrido; as viúvas hindus também deveriam se matar; os Wajagga, na África Ocidental, substituíam o cadáver de um suicida por o de uma cabra morta para tranqüilizar seu espírito. Na China antiga alguns homens se matavam antes de iniciar uma batalha, com o intuito de que suas almas furiosas auxiliariam na luta. (5)
O que existe em comum na maioria destas sociedades é a promessa ao suicida de uma imortalidade, de uma satisfação hedonista através do suicídio e uma espécie de condecoração honrosa da sociedade por aquele sujeito que se matou em favor do seu povo e dos seus costumes. Deste modo, não apenas melhoraria o desempenho social (pois elimina os velhos), mas acrescenta um aspecto onipotente ao suicídio, com a promessa divina de ganho do paraíso. Já que a morte não só era inevitável como relativamente desimportante, o suicídio, em última análise, passou a ser um ato reforçado pela sociedade e que parecia proporcionar muitos benefícios àquele que o cometia. Sacrificavam-se dias ou anos neste mundo para banquetear eternamente com deuses em outros mundos. O suicídio era, portanto, um ato frívolo em essência.
Algumas culturas foram conhecidas por cometerem suicídio em massa quando acuadas por outros povos. Os aborígenes da Tasmânia, por exemplo, ao serem caçados como cangurus, recusaram-se a procriar, não apenas por se tornarem mera caça, mas por não admitirem viver em um mundo onde isto fosse possível. Extinguiram-se em menos de três décadas.
Os índios do Novo Mundo se matavam aos milhares para escapar do tratamento cruel dispensado pelos espanhóis. Alvarez (1) ilustra, com alguns exemplos específicos, como os nativos mexicanos, levados a trabalhar nas minas de Carlos V, se mataram de fome; o de um carregamento inteiro de escravos que conseguiu se estrangular no porão de um galeão espanhol, apesar do limitado espaço que os faziam ficar ajoelhados ou agachados; os nativos da América iam em procissão atirar-se do alto de penhascos, apenas ao saber das proximidades das tropas espanholas. Os espanhóis tiveram uma idéia brilhante para deter a onda de suicídios de nativos, que escasseava rapidamente a mão-de-obra: ameaçaram matar-se também apenas para persegui-los no outro mundo, com crueldades ainda piores.
Na antiga Roma, Tarquínio Soberbos com-bateu uma epidemia de suicídio ao ordenar que os cadáveres fossem crucificados e deixados à mercê dos animais selvagens e das aves (2). Já na Grécia antiga, em Mileto, controlou-se o número de suicídios entre as jovens, ao ser proposto que seus cadáveres deveriam ser levados nus em passeata pela cidade e pela vergonha de ter o seu corpo exposto conseguiu-se conter esta epidemia. (5)
É interessante observar que em alguns destes casos foi o desespero que impeliu o suicídio racial. Um fenômeno singular e incomum, que foge da preceituação moral ou religiosa, mas que, ao mesmo tempo, tem um substrato religioso, como o êxito da ameaça espanhola bem comprovou. No caso das epidemias de suicídio na Grécia e Roma antigas, já se percebe a influência de algumas questões morais, já que o suicídio entre as moças foi contido pela vergonha de exibir seu corpo nu. Cabe ressaltar aqui que grande parte destas sociedades era politeístas, desta forma a moral cristã ainda não havia sido implantada, não influenciando a forma como se via o suicídio, como será visto mais adiante.
A QUESTÃO MORAL DO SUICÍDIO ENTRE GREGOS E ROMANOS
Foi com os gregos que começou uma nova perspectiva de suicídio, calcada em outros princípios que não a promessa de benefícios em outro mundo. De início, os gregos consideravam o suicídio um crime hediondo, por entenderem que se tratava de assassinato de um familiar, que era o crime mais bárbaro da época. Tanto que no idioma grego quase não há diferença entre assassinato de si mesmo e assassinato de familiares. Em algumas cidades o suicídio era a forma extrema de assassinato de familiares e o corpo do suicida tinha a mão decepada e era enterrado fora dos “cemitérios” da cidade.
Entretanto, a literatura grega, bem como a mitologia, está repleta de personagens que cometem suicídio e não são recriminados. Jocasta, Egeu, Erígone, Leucatas, Codro e Licurgo são alguns exemplos* . O que todos estes têm em comum é uma nobreza nos motivos de seus atos. Aparentemente, o suicídio por pesar, princípios patrióticos ou para evitar a desonra era aceito tranqüilamente.
Na filosofia grega, o ponto pacífico era que o suicídio não seria tolerado apenas se desrespeitasse gratuitamente aos deuses, ou seja, se não tivesse um motivo “nobre”. O mais interessante é que a discussão grega é equilibrada e desapaixonada, levando em consideração uma racionalidade primeva. Alvarez (1) coloca como uma conquista dos gregos passar a pensar o suicídio racionalmente, sem considerar o envolvimento sentimental dos indivíduos. O racionalismo grego defendia, como Platão, que se a vida se tornou imoderada, o suicídio se torna um ato justificável. O extremo disto se personificou no pensamento estoicista, cujo fundador, Zenão, enforcou-se de irritação por haver quebrado o dedão ao tropeçar. Para ele e seus seguidores, o suicídio era a mais razoável de todas as saídas.
Em Atenas, os magistrados mantinham um estoque de veneno para quem desejasse morrer. Para receber o veneno era necessário que o sujeito defendesse sua causa perante o Senado para obter a permissão oficial. Sobre isso Durkheim (9) fala que quem não desejasse mais viver deveria declarar suas razões ao Senado, e recebendo permissão poderia dar fim à vida. Aqueles que se consideravam infelizes deveriam expor suas aflições e os magistrados lhe dariam a solução para os seus males. Poderia acontecer também do Senado induzir alguém a cometer suicídio, como foi o caso de Sócrates, que foi obrigado a beber cicuta.
Se os gregos tentaram esvaziar do suicídio o aspecto sentimental justificando o ato pela infelicidade vivida por quem o cometia, já os romanos o trouxeram de volta. Para eles, o suicídio não era moralmente perverso, ao contrário, a maneira como alguém morria se tornou uma espécie de “teste de excelência e probidade”. O estoicismo romano é poético e romântico com relação ao suicídio, como demonstra este trecho de Sêneca, citado por Alvarez (1):
“Homem tolo, de que te lamentas e de que tens medo? Para onde quer que olhes existe um fim para os males. Vês aquele precipício escancarado? Ele leva à liberdade. Vês aquele oceano, aquele rio, aquele poço? A liberdade mora dentro deles. Vês aquela pobre árvore mirrada e seca? De cada galho seu pende a liberdade. Teu pescoço, tua garganta, teu coração, todos oferecem tantos meios para fugir da escravidão [...] Indagas o caminho para a liberdade? Tu o encontrarás em cada veia do teu corpo.”
Sêneca apunhalou-se e sua mulher o imitou e, como eles, vários romanos ilustres se suicidaram, como: Lucrécio, Aristarco, Petrônio, Árbitro, Bruto, Cássio, Marco Antônio, Nero e Otão. Os romanos não viam o suicídio nem com medo nem com repulsa, mas como uma validação cuidadosa e escolhida do modo como haviam vivido e dos princípios que haviam regido suas vidas. Viver de forma nobre também significava morrer de forma nobre e no momento certo. Tudo dependia da vontade e de uma escolha racional.
A lei romana, por sua vez, não retaliava nem degradava o suicídio, tampouco dava mostras de medo ou horror. No Código Justiniano não se punia o suicídio de cidadãos comuns, desde que motivados por intolerância à dor, à doença, ao fastio da vida, à loucura ou ao temor da desonra (neste aspecto similar aos gregos). Sem estes motivos, o suicídio era considerado irracional, sendo julgado não como crime, mas como tolice. A única punição para o suicídio de pessoas comuns era nos casos de estrangulamento, em que se privava o cadáver de sepultura e no caso de uma tentativa malsucedida o indivíduo ia a julgamento, podendo ser processado. Os suicídios indesculpáveis eram considerados os de militares e dos detentos à espera de julgamento, nestes casos o Estado confiscava os bens do morto. (12)
A lei romana ponderava também aspectos econômicos do suicídio. Escravos que tentavam suicídio até seis meses após a compra eram devolvidos (vivos ou mortos) e o negócio considerado desfeito, com restituição do pagamento. O suicídio de um soldado era considerado como deserção, pois ele era propriedade do Estado – o sujeito não podia dispor de sua vida, cabia isto ao Estado; caso ocorresse uma tentativa de suicídio entre os membros do exército que não fosse efetivada, a pena do soldado seria a morte .
Evidencia-se aqui que o suicídio era um crime apenas de cunho econômico para os romanos. Não era uma ofensa contra a moral ou a religião, mas sim contra o capital da classe proprietária de escravos ou contra os tesouros do Estado.
Especula-se que a tolerância romana com o suicídio e sua legislação, meramente econômica, são reflexos de uma sociedade fundada em prazeres violentos. Conquistadores agressivos, os romanos tinham uma índole violenta e seu principal prazer coletivo envolvia a morte. Escravos, povos subjugados e até mesmo romanos de classes inferiores morriam em espetáculos públicos de execução com feras ou soldados. Frazer (11) coloca que as pessoas se ofereciam para morrer em execuções públicas por uma quantia em dinheiro a ser paga a seus herdeiros e que o mercado era tão acirrado que algumas pessoas se ofereciam para serem surradas até a morte, ao invés de crucificadas ou decapitadas, pois isso seria mais doloroso e implicaria em pagamento maior. A violência era uma parte importante da economia e do estilo de vida dos romanos. As classes altas ansiavam pela morte alheia. As classes baixas viam na morte pública uma saída honrosa para a melhoria da qualidade de vida da família.
Supõe-se que isto pode ter contribuído para disseminar o estoicismo entre os romanos. O estoicismo oferecia uma oportunidade de apegar-se a ideais de razão acima da vida execrável e violenta em que viviam, terminando por significar no ato do suicídio racional uma espécie de corolário aristocrático da sede de sangue.(1)
Ao analisar a forma como gregos e romanos colocavam o suicídio, pode-se notar que em ambas culturas o suicídio poderia ser justificado pelas condições de vida desonrosa, por um sofrimento intolerável ou por uma doença insuportável. Em Roma, também era possível que estes casos fossem julgados e autorizados pelo Senado, mas à medida que estes Impérios foram crescendo estas concepções e formas de agir perante os casos de suicídios foram se modificando, como veremos a seguir.
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* Jocasta se mata como uma saída honrosa para uma situação intolerável. Egeu se atira ao mar por pensar que seu filho teseu, havia sido morto pelo Minotauro. Erígone se mata ao ver o corpo de seu pai morto. Leucatas se atira de um penhasco para não ser estuprada por Apolo. Codro, monarca de Atenas, entrega-se à morte ao saber que o oráculo previu que Atenas seria capturada em batalha se seu rei não morresse. Licurgo de Esparta faz o povo jurar fidelidade a suas leis, enquanto ele não voltasse de sua visita ao oráculo. Após ver o oráculo, manda um mensageiro de volta a Esparta e mata-se de fome apenas para que o povo fique preso eternamente à sua promessa.
O SUICÍDIO NO CRISTIANISMO
Do mesmo modo que para os romanos, a morte em si não tinha importância para os cristãos. É o revestimento teológico do cristianismo que faz da vida terrena no mínimo desimportante e no máximo um mal: quanto mais tempo de vida, maior a tentação de pecar. Para além da morte situou-se o paraíso, o lugar onde se poderia ser verdadeiramente feliz. Uma similaridade com os vikings, no paraíso encontrar-se-iam com Deus.
No princípio, o cristianismo parece ter se aproveitado desta sede de sangue, demonstrada pelos romanos, junto à idéia do suicídio, transformando-os em uma busca pelo martírio. Ao que parece, a Igreja primitiva incentivava o suicídio por aumentar o valor do sofrimento, o que valia como entrada grátis ao reino dos céus. (12)
Outro aspecto romano incorporado pelos cristãos é a importância com o modo de morrer. Além da libertação deste vale de lágrimas, pecados e tentações da vida, os padres falavam sobre a glória póstuma daqueles que morressem pela fé – de dias celebrados para eles no calendário da Igreja, de suas coisas adoradas enquanto relíquias e missas celebradas em seu nome. O martírio também foi associado a uma redenção certa. Tal qual o batismo purgava o pecado original, o martírio redimia automaticamente os pecados deixados pelo mártir, uma verdadeira garantia de entrada no paraíso.
Deste modo, supõe-se que a perseguição romana ao cristianismo não foi tão acirrada quanto a Igreja apresenta. Os cristãos se deixavam prender, se entregavam. Inácio, líder cristão na época, dizia: “Deixai-me desfrutar dessas feras, que por meu desejo seriam ainda mais cruéis do que já são; e se elas não me quiserem atacar, eu as provocarei e as arrastarei à força”. (18) O Padre Tertuliano proibia explicitamente seu rebanho de fugir da perseguição, exaltando não apenas a glória do martírio, mas prometendo uma vingança no paraíso. Seu tema era: “Se Cristo-Deus é morto é porque deu seu consentimento; Deus não está à mercê da carne”.(12)
O grupo cristão mais extremo era os donatistas, que entre os séculos IV e V d.C. batizavam-se para em seguida entregar-se à decapitação ou à fogueira e ensinavam as crianças cristãs a perturbar os algozes para serem também lançadas ao fogo. O objetivo de morrer tornou-se tão único que não importava mais o modo da execução. Profanavam templos pagãos, tumultuavam festas, invadiam tribunais e até detinham viajantes nas estradas com o único intento de serem mortos, pois sua conduta seria santificada apenas por sua intenção de felicidade eterna. Mas apenas em último recurso se enforcavam ou se lançavam de precipícios.
A Bíblia registra cinco suicídios. No Antigo Testamento tem-se Sansão, Saul, Abimelec e Aquitofel – nenhum deles recebe qualquer comentário desfavorável. No Novo Testamento, o suicídio de Judas Iscariotes é descrito com a mesma concisão: em lugar de ser somado a seus crimes, seu suicídio parece ser visto como uma forma de arrependimento.

A MUDANÇA DA PERSPECTIVA CRISTÃ SOBRE O SUICÍDIO
No século IV, Sto. Agostinho, contemporâneo dos donatistas, é o primeiro a preocupar-se com o dilema de se considerar o suicídio permitido ou não. A disseminação do suicídio poderia implicar no auto-extermínio de muitos de seus fiéis. A religião iria acabar, pois todos os batizados procurariam a morte de imediato.
Não havia nada na Bíblia que Sto. Agostinho pudesse utilizar contra o suicídio. Todo o seu trabalho de argumentação foi construído a partir do discurso pitagórico e de Platão, calcado no sexto mandamento “Não matarás”. Sobre isso Jean-Jacques Rousseau (1973) critica que os cristãos não tiraram isto do seu Evangelho, desta forma estariam seguindo o pensamento de Platão e não a autoridade do Evangelho. Quem se mata desobedece ao mandamento. Além disto, o suicídio para expiar pecados era uma forma de usurpar a função da Igreja e do Estado. Quem se matava inocente mancharia as suas mãos de sangue, cometendo pecado. Por último, sendo a vida uma dádiva de Deus, abreviá-la era equivalente a não aceitar a vontade divina. Esta argumentação foi muito vantajosa para a Igreja por recuperar medos primitivos em seus fiéis, tanto dos preconceitos quanto das superstições ancestrais. (1)
Graças ao trabalho de Sto. Agostinho, em 533 d.C. o Concílio de Órleans proíbe homenagens fúnebres a suicidas que se matassem quando acusados de terem cometido crimes e dá à Igreja e ao Estado todos os bens deste. É uma adaptação das leis romanas, mas aqui se condena o suicídio como crime, visto o tratamento dado ao cadáver. Com o Concílio de Arles em 542, o cristianismo oficializa a condenação eclesiástica ao suicídio e nos dez anos seguintes houve um consenso de que a morte voluntária era um pecado contra Deus e um crime contra os poderes seculares. Em Bragues no ano 562, esta lei é estendida a todos os suicidas. Finalmente em 693 se fecha a porta ao suicídio no Concílio de Toledo, que acrescenta que aquele que tentasse o suicídio sem sucesso deveria ser excomungado. (12, 18)
O que começa como uma medida preventiva de Sto. Agostinho se transforma em uma mudança de postura. Cria-se aversão e horror ao suicídio, surgindo definitivamente uma repulsa moral coletiva, que perdurou por muitos séculos. No século XI, São Bruno chama os suicidas de “mártires de Satã” e afirma que Judas é mais condenável por ter-se matado que por ter traído Cristo. Todos os argumentos cristãos são calcados nas perspectivas gregas, inclusive os discursos de S. Tomás de Aquino, que no século XIII ainda colocava que um suicida, seja por que motivo for, não seria enterrado em terras cristãs.
Os corpos dos suicidas passam a ser tratados cruelmente nas diferentes sociedades. Na Inglaterra eram enterrados de bruços, com estacas no peito, em encru-zilhadas, e na França eram arrastados por cavalos pelas ruas da cidade. Durante a Idade Média o corpo do suicida era pendurado pelos pés, ateava-se fogo, depois se colocava em tonéis e eram jogados em rios, alguns destes tinham frases como “deixem ir”. Em Zurique o corpo do suicida por afogamento era enterrado na areia, próximo à água. Neste tempo, as punições para quem cometia suicídio aconteciam através de mutilações ao corpo. A repressão aos suicidas só diminui entre os séculos XVII e XVIII, quando a Revolução Francesa (1789-1799), ao propor uma nova legislação, proíbe as condenações e a Igreja passa a ser mais tolerante. (4)
Segundo Pratts (16) a exposição do corpo do suicida nas praças públicas e estes rituais de tratamento do corpo perduraram por séculos na Europa, só desaparecendo definitivamente em meados do século XIX; o mesmo ocorreu com a proibição do enterro cristão aos suicidas, que foi aliviada após a Revolução Francesa.

A REFORMA CRISTÃ NO SÉCULO XII E O SUICÍDIO
As mudanças sofridas pela Igreja influenciaram a mudança das discussões sociais do suicídio. Quando a Igreja se revigora no século XII, com a inclusão do matrimônio como sacramento, da obrigatoriedade da confissão e institui o purgatório, torna-se necessário rediscutir a questão do suicídio.
De acordo com Le Goff (13), o purgatório acrescenta ao cristianismo o conceito de mediano que até então não existia. Quando se era bom, ganhava-se o paraíso, quando se era mal, o inferno. O purgatório passou a ser um lugar onde se poderia ficar indefini-damente enquanto se “purgavam” pecados terrenos, mas que podia abrir ao homem as portas tanto do inferno quanto do paraíso; traz um novo sentido aos atos da vida. O que se faz durante toda a vida se torna importante, pois cada atitude assume relevância singular no destino pós-morte.
Há um retorno da atenção do sujeito sobre ele mesmo, a avaliação constante, uma busca de melhorias de um espaço interior que antes não existia. O sujeito pode ser depósito de uma série de coisas boas e ruins e a auto-avaliação e a confissão são meios de ajudar o sujeito a agir de modo a conquistar o céu, ainda que via purgatório. É uma personificação do julgamento final. Para manter certa coerência, o suicídio continua sendo considerado um pecado hediondo, mas agora existe a possibilidade de a vida pregressa do sujeito evidenciar que ele estava “tomado pelo demônio”, enlouquecido.
A relativização do pecado, na preocupação em contrapô-lo ao restante da vida do sujeito, abrindo a possibilidade dele expiar sua culpa no purgatório, se estende também ao suicídio. Esta questão se insere nos tribunais, trazendo a possibilidade de uma “loucura” do suicida. Torna-se mister compreender, como afirma Veneu (18), a sanidade ou loucura do suicida para determinar se foi uma decisão racional de tirar a própria vida – passível de punição – ou se foi um ato induzido pelo demônio, pela loucura – o que absolve o suicida.
Estas discussões se tornaram mais eficazes séculos após terem iniciado. Até o século XVIII a maioria dos suicidas era ainda acusado de pronto, sem qualquer averiguação. Somente após o século XVIII é que se iniciam processos intrincados de investigação e a família tem o direito de lutar para provar a doença do suicida, sua loucura, ou sua possessão. Isto aconteceu após a Revolução Francesa, quando as condenações são proibidas e a Igreja se torna mais tolerante, não aplicando punições a quem cometeu suicídio num momento de loucura ou se o indivíduo se arrepende diante da morte do ato que cometeu. (5) Contudo, mudanças importantes se deram entre os séculos XII e XVIII.
A própria palavra “suicídio” é um termo que surge apenas no século XVII, passando a ser mais utili-zado a partir de 1734, no auge do Iluminismo, em escritos dos abades Prévost e Desfontaines. (3) Ao que parece a primeira utilização do termo data de 1642 por Sir Thomas Browne, mas o termo era raro o bastante para não aparecer na edição de 1755 do, na época famoso, Dicionário do Dr. Johnson. Antes disto, as palavras utilizadas eram derivativos de palavras como assassinato, homicídio e destruição: auto-assassinato, auto-homicídio e autodestruição, ou então morte voluntária. (1)
É, pois, a Igreja que dispara as novas ponderações a respeito do suicídio, pois insere um paradigma que muda a noção do homem. Por outro lado as avaliações dos magistrados sobre os suicídios cometidos buscavam determinar o grau de insanidade ou de delinqüência do suicida. Se ele era avaliado como louco, seria inocentado do assassinato de si mesmo – e seus bens eram restituídos à sua família. Se fosse considerado culpado, sem apresentar loucura, era um criminoso, sendo seus bens propriedades do Estado. Sobre isto Alvarez (1) traz uma citação de um satirista do século XVIII que ilustra o caminho que esta discussão acabou tomando:
Ao ler diários oficiais, um estrangeiro pode ser naturalmente levado a imaginar que somos o povo mais lunático que existe no mundo.Quase todos os dias nos informam que o tribunal de inquérito de mortes suspeitas abriu sessão para deliberar sobre o corpo de algum miserável suicida e chegou ao veredicto de demência. É fato muito bem sabido, contudo, que o inquérito não foi feito para averiguar o estado mental do falecido , mas, sim, o estado de sua fortuna e família. A lei de fato determina que aquele que se mata propositalmente deve ser tratado como um bruto e ser negada as cerimônias de enterro. Mas entre centenas de lunáticos a granel eu nunca soube que tal sentença tivesse sido aplicada, a não ser contra um pobre sapateiro que se enforcou na própria barraca. Um pobre diabo sem vintém que não deixou dinheiro bastante nem sequer para custear as despesas do funeral pode ficar de fora do adro da Igreja. Mas matar-se com uma pistola elegantemente ornamentada ou com uma espada de punho feita em Paris qualifica o distinto proprietário a uma morte súbita, um pomposo funeral e um monumento a enumerar suas virtudes na abadia de Westminster.
Entre os séculos XII e XVIII o que mantém viva a discussão sobre suicídio é a produção intelectual e literária. Dante, no século XIV, em sua Divina Comédia, tece severa crítica aos suicidas, colocando-os quase no fundo do inferno, atormentados eternamente. Quase contemporâneo a ele, Thomas More (15) escreveu Utopia em 1516. Nesta obra afirma que a morte voluntária, desde que autorizada pelas autoridades, é um dos costumes da república ideal, mas se não tiver autorização deve ser retaliada de modo similar à proposta cristã.
Michel Montaigne publica Ensaios, em 1580, onde coloca que “a morte voluntária é a mais bela. Nossa vida depende da vontade de outrem; nossa morte, da nossa. Em nenhuma coisa, mais do que nesta, temos liberdade para agir” (14) . Parece que o autor coloca a finitude da vida com desprendimento e coragem, se desvinculando da perspectiva cristã, colocando o sujeito como responsável pelos seus atos e por sua morte. Aqui se percebe mais uma mudança na compreensão do suicídio, sua inovação está em pôr a discussão sobre o suicídio com um enfoque para a consciência individual, enquanto árbitro legítimo da escolha entre a vida e a morte, coisa que não se admitia até então, sempre delegando esta responsabilidade à Igreja ou ao Estado.
Shakespeare (1564-1616) tem sua obra pontuada de comentários suicidas como em Hamlet e Otelo, além do suicídio máximo romântico de Romeu e Julieta. Hamlet chega mesmo a demonstrar pensar os motivos para a Igreja condenar o auto-assassinato, pois poderia se libertar das tormentas que sofria. É sabido que o autor não apenas conhecia mais apreciava Montaigne e muitas discussões que apresenta sobre a moralidade versus a consciência individual sobre o suicídio podem ser um reflexo direto desta amizade.
John Donne (8) escreve a obra mais polêmica de todas – Biathanatos. Escrito entre 1607 e 1608, Donne não tem coragem de publicar seu trabalho, mas o mantém escondido até que, depois de sua morte, seu filho lance a primeira edição em 1647. É, em resumo, uma tese de que o suicídio não pode ser um pecado. Uma obra que vai contra a condenação religiosa ao suicídio, Donne coloca que a vontade de morrer é algo natural e inerente ao ser humano, é muito mais honroso tirar a própria vida em situações de sofrimento, pois assim se manteria o mais essencial de si. Numa tentativa de se fazer julgamentos, decide-se, a partir de circunstâncias de tempo, lugar e pessoas envolvidas, o valor da ação suicida. (18) Parece que aí se tem a primeira tentativa de se considerar as condições sociais e culturais como determinantes de um comportamento, pois atualmente não se deve pensar em suicídio sem compreender o contexto no qual ele ocorre e as motivações individuais que levam uma pessoa a se suicidar.

O INÍCIO DA DISCUSSÃO CIENTÍFICA SOBRE O SUICÍDIO
A crescente discussão sobre sanidade/insanidade no século XVIII teve reflexos imediatos nas ciências da época, ultrapassando o âmbito religioso e jurídico aos quais se circunscrevia. A medicina inicia uma trajetória de construção destes “limites mentais” e a discussão cresce até englobar o suicídio.
Os estudos científicos se iniciaram no século XIX e o marco histórico na discussão científica sobre o suicídio é o livro de Emile Durkheim(9), intitulado O Suicídio e subtítulo Um estudo sociológico (publicado pela primeira vez em 1897), que deixava clara a perspectiva deste autor. Sua questão remetia às condições sociais que produziam tamanho desespero e não mais à moralidade do ato. Examinando as taxas de suicídio em diferentes países, o autor as relaciona ao “grau de coesão social” em diferentes culturas e grupos. Sua definição de suicídio é ainda utilizada não apenas ispsis literis, mas principalmente como referência, como lembra Feijó: (10) “toda morte resulta imediatamente de um ato positivo ou negativo, realizado pela própria vítima, sabedora de que deveria produzir este resultado”.
Ele diferencia o suicídio da tentativa sem êxito e se propõe, dentro de uma análise sociológica, a distinguir tipos de suicídio. Sua classificação é a matriz para classificações posteriores e alguns autores afirmam ser impossível considerar o suicídio sem levar em conta a questão sociológica levantada por Durkheim. De acordo com Durkheim (9), existem 3 tipos fundamentais de suicídio. O egoístico seria aquele em que o indivíduo perdeu o sentido de integração com o seu grupo social e procura a morte. O suicídio anômico é observado entre indivíduos vivendo numa sociedade em crise, na qual faltam padrões de ordem e de comportamento costumeiros. Por fim, o suicídio altruísta é aquele no qual o indivíduo sacrifica sua vida pelo bem do grupo, refletindo a influência de mecanismos de identificação grupal.
Tentando não julgar moralmente o suicídio, mas sim conhecê-lo e tecer considerações com o máximo de neutralidade possível, Durkheim é responsável por abrir o caminho para o desenvolvimento de estudos sobre o suicídio dentro das diferentes vertentes do conhecimento, tanto sociológico quanto psicológico, médico e antropológico.

CONCLUSÃO
Ao que parece, as discussões atuais sobre o suicídio nas civilizações envolvem a influência da cultura, dos valores e da moral religiosa. Observam-se diferenciações entre a forma de lidar e de se encarar o suicídio entre as sociedades orientais e ocidentais, por exemplo. As primeiras, desde seus primórdios aceitavam e até valorizavam os suicidas. O grande exemplo são os Harakiris, cujo primeiro registro é de 1170, ficando marcante a atuação dos Kamikases durante a II Guerra Mundial. Para o povo japonês o suicídio tinha um grande significado, pois, vencendo o medo da morte, o samurai destacava-se das outras classes. Hoje em dia, o suicídio é considerado como uma forma de se recuperar a honra perdida. Uma especulação, bastante arriscada (mas não de todo infundada); talvez os atuais homens-bomba que envolvem seus corpos com explosivos tenham se inspirado nas práticas dos samurais japoneses. Com diferenças de objetivos, matam-se a si e aos outros não por recuperar sua honra, mas para fomentar a guerra. Já nas sociedades ocidentais tanto o suicídio, quanto a morte são temas negados e deixados de lado. Algumas características destas culturas demonstram a dificuldade de se encarar a morte e o suicídio, por exemplo, através do culto ao corpo. O individualismo faz com que as pessoas não se envolvam afetivamente e não se ajudem mutuamente para que não tenham que sofrer com a perda de alguém querido. Há uma grande perturbação nas sociedades ocidentais quando se fala em morte e suicídio. Um exemplo foi o suicídio em massa que ocorreu nos Estados Unidos, em 1978, quando centenas de pessoas se mataram, seguindo a orientação de Jim Jones, provavelmente um fanático religioso que acreditava ser Deus. (7)
Desta breve retomada histórica sobre o suicídio, constata-se que a sua compreensão, as formas de encará-lo e até puni-lo apresentam um forte vínculo com o momento social em que está inserido, devendo ser considerados detalhes que vão desde o método empregado até a sua motivação.
Ao longo dos tempos, percebe-se diferentes formas de se encarar o suicídio, em algumas culturas mais permissivas e outras mais proibitivas. Hoje, existem uma série de restrições, principalmente religiosas, perante o ato suicida; isto se deve ao momento histórico atual. Acredita-se que a função e a interpretação do suicídio em cada época e em cada cultura foi determinante para o que vemos e pensamos sobre isso atualmente. A partir de um resgate histórico é possível compreender melhor as ações humanas atuais, compreender as diferenças culturais, morais e religiosas que tornam o mundo tão diverso e tão rico.
Entender mais sobre a concepção atual de suicídio é ir além do sujeito singular que renuncia à vida. Conhecer o suicídio implica não apenas conhecer o suicida, sua vida, seus pensamentos, desejos e angústias. Implica também e principalmente conhecer o meio em que vive: grupos e sociedade. Implica mais ainda em buscar encontrar as meadas que unem estas perspectivas, os pontos de junção que constituem a sociedade como tal, os homens como tais, e o suicídio como tal.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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11- FRAZER, J.G. The Golden Bough. Londres, edição resumida, 1960. Tradução de Fabiana Silva.
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17- RUESCH, H. No país das sombras longas. Rio de Janeiro: Editora Record,1974.
18- VENEU, M.G. Ou Não Ser. Brasília: Editora UnB, 1994.

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